segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O que é ser ator?

É PaRa CoNsTruir ou PaRa dEscoNtruir para ficar perfeito?


É claro que é para construir! Mas aí você constrõe em cima do que? Em cima das suas vivências, em cima do que é conhecido, dos seus hábitos. Então seria melhor desconstruir primeiro para construir depois?

O ator para construir seu personagem precisa estar pronto para se despir muitas vezes, de suas memórias. Assim como, muitas vezes, precisa se encher de suas memórias mais intímas. Precisa ter o cuidado de forma este outro ser, que fará parte da sua vida, mas sem levá-lo para fora do seu lugar de atuação. Precisa buscar uma identidade , acreditar que este outro ser existe, fazendo-o parecer completamente real aos olhos de quem o vê.

Você já teve a oportunidade de ler o monólogo "O Ator", escrito por Chico de Assis, que foi estrelado por Lima Duarte, no III Festival Ibero Americano, organizado pelo Memorial da América Latina em março de 2010?

Nãooo? Não leu? Tudo bem, eu também não havia lido até este ano, e simplesmente me apaixonei pelo texto e vou compartilhar com vocês! Espero que gostem!

Lima Duarte


O ATOR

 
Então você tem curiosidade de saber como é o ator por dentro? Eu digo. O dentro está por fora o fora está por dentro. Entenderam? Trato simples para um ator. Jogar a vida de fora para dentro e depois devolver a mesma vida botando de dentro para fora. Entre uma coisa e outra, isso que alguns chamam de arte, eu prefiro artimanha.
                                  
Quando o ator começa a achar o seu personagem, o mundo fica bem diverso. Vamos por passos: primeiro é preciso deixar-de-ser.
 
Isso mesmo: deixar de ser, desaparecer, espantar diante de si e dos outros. Tornar-se invisível. Trocando em miúdos: SER NADA. Porque no nada, tudo cabe. Se você já está lotado de tantas emoções e idéias, dentro não cabe mais coisa alguma. É preciso abrir espaço no nosso eu, para o que virá. Porque aquele personagem que virá não será nem maior nem menor do que você. Terá o seu exato tamanho. Fácil não é? Alguém pode pensar que o ator veste um personagem como veste um terno.
 
Não, não é assim. Isso não é a arte de representar.
 
Temos que ir aos poucos, com cautela, vendo através da mente ainda nublada, dos primeiros tratos de sentimentos e gestos do personagem.Daí começa a surgir uma linha mais forte e marcada, como uma espécie de foca que vamos buscando cada vez com maior nitidez. São formas que dançam a nossa frente, desordenadas, uma orgia de jeitos e facetas disparatadas. Um, que não nós, ficaria doido com o embrulho. Mas com este leite fomos criados  - nós que somos atores.
 
É deste caos que vai nascer o personagem. Primeiro bruto e mal acabado como um calunguinha de barro daqueles de mestre Vitalino. Bruto e mal acabado, mas muito belo. Depois, as formas mais delicadas vão se desenhando suave e constantemente durante o processo. Tudo montadinho, como um jogo vivo. Como pescar no rio da própria alma e encher o picuá de detalhes de vida; relances de emoções; trapos de angústia, visões de sonhos. Rostos que vimos uma vez....meia vez.....vez alguma. Apenas produto da invenção de um ser. E assim vamos vestindo de vida esse prodígio. Este ser noviço, que nos tira a calma.
 
Dorme conosco, acordo conosco, come e bebe conosco e até ama e odeia juntinho com a gente: a pele ali relando a pele. É um trambolho desajustado que acaba por se acomodar com a gente. Atrevido nos mostra o próprio rosto para que não tenhamos dúvidas que ele é ele; e não nós.
 
Ah, que caminho de aventura, seres tu mesmo a outra criatura. Ah, que loucura chorar e rir, por si mesmo e pelo estranho que lentamente tiraste da vida e do sonho, para a realidade da arte. Juro! Só o ator. Isso só o ator pode sentir.
 
Chega o momento em que tudo fica como que, pronto. O personagem domina, vem a tona como um monstro abissal. Reinventando a realidade. E é tu quem o soltas e seguras como um cavaleiro num rodeio mortal. Aí já não vives par ti mesmo e sim para ele.
 
Acordas cedo e dormes tarde: para ele. Recebes aplausos, flores e cumprimentos; mas são para ele. Você ator e apenas o humano intermediário. Quando te encontram na rua, te chamam pelo nome dele e és obrigado a responder. E se és ator, eu juro que é questão de tédio. Às vezes a gente pergunta:
 
Mas porque não separam o criador da criatura?
 
O chato é que às vezes até nós mesmos nos confundimos. Às vezes eu não sei se sou EU mesmo, ou os personagens que crio. Eu fico tão ligado a ele; que palavras minhas passam como dele e as dele como minhas. E chega um tempo que não sei mais onde termina a mão dele e começa meu próprio braço. E perco a noção. De qual coração são as batidas que sinto no peito? Do meu.....do dele, não sei.
 
Aí chega o tempo de quebrar o espelho. O personagem chega ao fim do seu tempo de vida. Começa a morrer e não podes morrer com ele. Tens que desfazer o já feito. Desinventar o ser e dividir o coração no peito. No começo é como aprender a andar e falar de novo; como se tivessem te cortado a metade. Não sabes mais viver uma vida só. Sua íntima essência de ator requer a duplicidade.
 
Que monotonia, ser eu mesmo, noite e dia.
 
Então eu fico confuso. Conto histórias, invento mentiras, minto realidades, misturo tudo e jogo no sonho e jogo o sonho na vida e a vida. Discuto futebol, vou as corridas de cavalos, converso com meus cães, bebo com os amigos. Mas fujo dos espelhos. Pelas noites fico rodeado de antigos fantasmas de personagens mortos que me assombram com lembranças. Tantas vidas que viveram, tantas mais a viver. Então finjo que estou feliz. Engano que estou triste. Mas na verdade, estou só incompleto. É isso: meia vida e meia morte.
 
Mas quando és ator a vida segue de outro jeito. Cai na tua mão, outro papel. Passas os olhos e alguma coisa te fisga, como um anzol. Tentas fugir arrastando a linha mas é tarde. Estás novamente pescado. Então eu digo que o primeiro passo é deixar-de-ser. Depois deixar bater baixinho dentro de teu peito o coração daquele personagem que lentamente se forma e te deforma.
 
Vocês querem saber o que é preciso para ser ator?
 
Eu digo: são olhos que chorem lágrimas duplas. Ás vezes um olho que ri enquanto o outro chora. Olhos que olhem um tempo para fora e para dentro. É preciso a boca treinada para separar o sabor da tua lágrima do gosto da lágrima criada. Mas principalmente é preciso manter a alam ensolarada e ampla para ser um DEUS dentro de si. Para poder jorrar para fora com luz, angústia e talento com toda a voz o comando:
 
FAÇA-SE HOMEM!!!!

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